A Justiça Federal (2ª Vara da Subseção
de Marabá/PA) recebeu denúncia do Ministério Público Federal contra o
coronel da reserva do Exército brasileiro Sebastião Curió Rodrigues de
Moura e contra o major da reserva Lício Augusto Maciel. Ambos são
acusados pelo sequestro qualificado de militantes durante a Guerrilha do
Araguaia. É o primeiro processo instaurado no País pelos crimes da
ditadura. Denúncias anteriores não foram aceitas pelo Judiciário.
O MPF imputa crimes contra a humanidade
aos acusados e fundamenta seu pedido inicial na sentença da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos de 24.11.10. Para os procuradores não
há contradição com a lei de anistia, tampouco com a decisão do STF que
já se posicionou por sua validade. É que a lei de anistia foi
considerada inválida pela CorteIDH.
Vale lembrar que em São Paulo um pedido
semelhante do MPF foi negado pela Justiça Federal. Carlos Alberto
Brilhante Ustra (ex-chefe do Doi-Codi) e o delegado da Polícia Civil,
Dirceu Gravina, foram denunciados por sequestro, supostamente praticado
em maio de 1971, mas houve recusa no pedido inicial e aguarda-se o
julgamento de recurso.
Com a decisão da juíza federal Nair
Pimenta de Castro (Marabá/PA), Curió e Maciel serão os primeiros
militares do país a responderem processo penal por crimes ocorridos
durante a Guerrilha do Araguaia.
Artigo anterior de minha autoria dizia:
De 1964 a 1985 o Brasil foi governado
por mais uma ditadura militar. Das 7 Constituições brasileiras (1824,
1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988), apenas a última não foi “regida” –
escrita ou comandada – pelos militares. Durante a última ditadura
militar muitas pessoas foram mortas pelos agentes que atuaram na defesa
do estado golpista ou estão desaparecidas – cerca de 500 pessoas. Os que
lutaram contra a ditadura foram devidamente processados e condenados,
pelo próprio regime de exceção instalado. Os agentes da ditadura, no
entanto, jamais foram processados ou punidos. O que fazer com eles?
A Lei de Anistia brasileira – de 1979 –
tentou encontrar uma saída: perdão para todos! Essa lei foi validada
pelo STF em abril de 2010. Em seguida, em 24.11.10, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos julgou-a sem nenhum valor jurídico e,
ademais, desautorizou o STF que, ao julgar a lei de anistia, não levou
em conta os tratados internacionais firmados pelo Brasil, que não
admitem anistia para os chamados crimes contra a humanidade – crimes
cometidos pelos que atuam em defesa de um estado ilegítimo contra a
população civil, de forma generalizada e indiscriminada. A decisão do
STF foi “inconvencional” (porque violou várias convenções
internacionais).
O Brasil, assim como qualquer outro
país, é livre para firmar pactos internacionais. Pode fazê-lo ou não,
conforme suas conveniências internas. Era livre para admitir ou não a
jurisdição do sistema interamericano de direitos humanos. A partir da
década de 80 nosso País firmou praticamente todos os tratados
internacionais de direitos humanos. Em 1998 admitiu a jurisdição da
Comissão e da Corte Interamericanas de Direitos Humanos. Agora, se quer
se mostrar um estado sério, “pacta sunt servanda” (cumpra o que foi
assumido). Existe uma sentença condenatória contra o Brasil, desde
novembro de 2010, na qual se determina que sejam investigados e, se o
caso, punidos os crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura
militar. Esses crimes, desde 1945, por força do “jus cogens” universal,
não são anistiáveis nem prescritíveis (isso está dito com todas as
letras na sentença da CIDH, que já transitou em julgado).
Em países tradicional e altamente
autoritários, como o Brasil, que ostenta, ademais, um atraso descomunal
em termos “jushumanitários”, é impressionante como nos deparamos com
gente tão ignorante do sistema jurídico vigente (esse é o caso, por
exemplo, do subscritor do editorial da Folha de S. Paulo de 19.03.12, p.
A2), que não tem a mínima ideia dos compromissos internacionais
assumidos pelo Brasil, que velada ou abertamente prega a violação do
“pacta sunt servanda”, que não vê que o Brasil é um dos únicos países do
mundo que não fez ainda sua “Justiça de Transição” (do regime
ditatorial para o democrático), que não enxerga que todos os países mais
avançados que o nosso “jushumanitariamente” (Argentina, Uruguai, Chile
etc.) já estão processando os responsáveis pelos crimes contra a
humanidade.
O Brasil, embora seja a sexta potência
mundial em termos econômicos (progresso), continua extremamente
autoritário e ainda conta com muita gente ignorante da complexidade do
sistema jurídico da pós-modernidade. Ademais, com a impunidade dos
crimes contra a humanidade, revela um atraso bárbaro no campo
“jushumanitário”.
*LFG – Jurista e cientista criminal.
Fundador da Rede de Ensino LFG. Codiretor do Instituto Avante Brasil e
do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983),
Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).
Fonte: http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2012/09/03/primeiro-processo-por-crimes-da-ditadura/