sexta-feira, 20 de maio de 2011

Portar ou possuir munição é crime?

  
A Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) prevê em seu art. 14, ser crime “portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

A pena do crime é de reclusão e varia de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, além da multa.

O Estatuto do Desarmamento, mais à frente, em seu art. 16, parágrafo único, prevê também como crime “possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

A pena aqui varia de 3 (três) a 6 (seis) anos, além da multa.

Frisa-se que, em ambas as hipóteses (porte ou posse de munição), em razão do quantum de pena mínima e abstratamente cominada, não se admite nem suspensão condicional do processo.

A questão jurídica a saber é se o legislador houve bem ao criminalizar tais condutas. Haveria ofensa aos princípios da estrita legalidade, da proporcionalidade, da causalidade, da subsidiariedade, da intervenção mínima, da fragmentariedade e lesividade?

Considerando que o simples fato de possuir a munição (de uso restrito no caso do julgado) configura o crime do art. 16, da Lei 10.826/2003, por se tratar de delito de mera conduta, de crime de perigo abstrato, cujo objeto jurídico tutelado (imediatamente) é a segurança coletiva, eis entendimento do Superior Tribunal de Justiça:


HABEAS CORPUS. POSSE DE MUNIÇÃO E ACESSÓRIOS DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO. POTENCIALIDADE LESIVA DO ARMAMENTO APREENDIDO. IRRELEVÂNCIA. DESNECESSIDADE DO EXAME. CRIME DE MERA CONDUTA. COAÇÃO ILEGAL NÃO EVIDENCIADA. ACÓRDÃO CONDENATÓRIO MANTIDO. 1. O simples fato de possuir munição e acessórios de arma de fogo de uso restrito caracteriza a conduta descrita no art. 16, da Lei n. 10.826/03, por se tratar de delito de mera conduta ou de perigo abstrato, cujo objeto imediato é a segurança coletiva, configurando-se o delito com o simples enquadramento do agente em um dos verbos descritos no tipo penal repressor. 2. Ordem denegada. (HC 95604/PB, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 15/04/2010, DJe 03/05/2010).


Por outro lado, analisada mais detidamente, à luz dos princípios clássicos do Direito Penal, acima aludidos, a questão se torna muito controvertida.

Não sem resposta, mas de difícil articulação prática, algumas perguntas podem ser formuladas. É relevante do ponto de vista jurídico penal, sancionar a conduta de quem apenas detém munição? Tal fato, isoladamente, gera insegurança social? Justifica-se a atitude legislativa de antecipar a tutela penal para um momento anterior à efetiva lesão ao bem jurídico mediatamente protegido (integridade física)? A imputação é legitimada, à luz do Estado Democrático de Direito, quando se concentra o injusto penal mais no desvalor da ação do que no desvalor do resultado jurídico? O Estado deveria se dedicar apenas à proteção subsidiária dos bens jurídicos essenciais, segundo as clássicas regras garantistas, ou, diante do atual estágio social em que se vive, estaria justificada a flexibilização das regras de atribuição de responsabilidade penal a fim de proteger bens jurídicos supraindividuais?

Com as palavras, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, no julgamento (ainda em andamento) do HC 90075:


Informativo 583, STF – Segunda Turma
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A Turma retomou julgamento de habeas corpus em que se pretende, por ausência de potencialidade lesiva ao bem juridicamente protegido, o trancamento de ação penal instaurada contra denunciado pela suposta prática do crime de porte de munição sem autorização legal (Lei 10.826/2003, art. 14), sob o argumento de que o princípio da intervenção mínima no Direito Penal limita a atuação estatal nesta matéria — v. Informativos 457 e 470. O Min. Cezar Peluso, em voto-vista, por reputar atípica a conduta imputada ao paciente, deferiu o writ para determinar o trancamento da ação penal. Observou, de início, que a matriz definidora e legitimadora do Direito Penal residiria, sobretudo, na noção de bem jurídico, sendo ela que permitiria compreender os valores aos quais o ordenamento concederia a relevância penal, de acordo com a ordem axiológica da Constituição, e, por isso, legitimaria a atuação do instrumento penal. Ressaltou que, na chamada sociedade do risco, com a pretensão de se atenuar a insegurança decorrente da complexidade, globalidade e dinamismo social, demandar-se-ia a regulação penal das atividades capazes de produzir perigo, na expectativa de que o Direito Penal fosse capaz de evitar condutas geradoras de risco e de garantir um estado de segurança. Considerou que, para justificar a antecipação da tutela penal para momento anterior à efetiva lesão ao interesse protegido, falar-se-ia em prevenção e controle das fontes de perigo a que estão expostos os bens jurídicos, para tratar situações antes não conhecidas pelo Direito Penal tradicional. Frisou que, para previsão de determinada conduta como reprovável, construir-se-ia uma relação meramente hipotética entre a ação incriminada e a produção de perigo ou dano ao bem jurídico. Destacou que o ilícito penal consistiria na infração do dever de observar determinada norma, concentrando o injusto muito mais no desvalor da ação do que no desvalor do resultado, que se faria cada vez mais difícil identificar ou mensurar. HC 90075/SC, rel. Min. Eros Grau, 20.4.2010.  (HC-90075)

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Assim, enfatizou que, em vez do tradicional elemento de lesão ao bem jurídico, apareceria como pressuposto legitimador da imputação a desaprovação do comportamento que vulnera dever definido na esfera extra-penal. Asseverou, no ponto, que essa tendência poderia entrar em choque com os pressupostos do Direito Penal clássico, fundado na estrita legalidade, na proporcionalidade, na causalidade, na subsidiariedade, na intervenção mínima, na fragmentariedade e lesividade, para citar alguns dos seus princípios norteadores. Evidenciou, destarte, que grave dilema se poria no fato de que, de um lado se professaria que o Direito Penal deveria dedicar-se apenas à proteção subsidiária repressiva dos bens jurídicos essenciais, por meio de instrumentos tradicionais de imputação de responsabilidade, segundo princípios e regras clássicos de garantia, e, de outro, postular-se-ia a flexibilização e ajuste dos instrumentos dogmáticos e das regras de atribuição de responsabilidade, para que o Direito Penal reunisse condições de atuar na proteção dos bens jurídicos supra individuais, e no controle dos novos fenômenos do risco. Esclareceu que as normas de perigo abstrato punem a realização de conduta imaginada ou hipoteticamente perigosa sem a necessidade de configuração de efetivo perigo ao bem jurídico, na medida em que a periculosidade da conduta típica seria determinada antes, por meio de uma generalização, de um juízo hipotético do legislador, fundado na idéia de mera probabilidade. Avaliou que, nos tipos de perigo concreto, se exigiria o desvalor do resultado, impondo o risco do bem protegido, enquanto, nos tipos de perigo abstrato, ocorreria claro adiantamento da proteção do bem a fases anteriores à efetiva lesão. Asseverou, todavia, que deveria restar caracterizado um mínimo de ofensividade como fator de delimitação e conformação de condutas que merecessem reprovação penal. Nesse sentido, registrou que a aplicação dos instrumentos penais de atribuição de responsabilidade às novas realidades haveria de se restringir aos casos em que fosse possível compatibilizar a nova tipificação com os princípios clássicos do Direito Penal. HC 90075/SC, rel. Min. Eros Grau, 20.4.2010.  (HC-90075)

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Salientou ser certo que a lesividade nem sempre significaria dano efetivo ao bem jurídico protegido, mas, para se entender e justificar como tal, exigiria, pelo menos, que de algum modo se pusesse em causa uma situação de perigo. Reportou que, ainda nos delitos de perigo abstrato, seria preciso acreditar na perigosidade da ação, no desvalor real da ação e na possibilidade de resultado perigoso, não sendo punível, por isso, a conduta que não pusesse em perigo, nem sequer em tese ou por hipótese, o bem jurídico protegido. Entendeu que a conduta considerada perigosa de um ponto de vista geral e abstrato poderia não o ser em verdade e, no caso dos autos, não haveria possibilidade de lesão à incolumidade pública em virtude do transporte de 10 projéteis, de forma isolada, sem a presença de arma de fogo. Sustentou que daí não se poderia admitir a comparação com eventual tráfico ou transporte de grande quantidade de material de munição. Nesse diapasão, compreendeu que a conduta de portar munição, uma das várias previstas pelo art. 14 da Lei 10.826/2003, não seria aprioristicamente detentora de dignidade penal, porquanto se haveria de se verificar, em cada caso, se a conduta seria capaz de, por si, representar ameaça real ou potencial a algum bem jurídico. Consignou que, se não se vislumbrar ofensividade da conduta, a criminalização do porte de munição fulmina a referência material, que, segundo os padrões clássicos, deveria não só justificar a intervenção do Direito Penal, mas presidir a interpretação dos tipos com vistas a determinar a sua realização. HC 90075/SC, rel. Min. Eros Grau, 20.4.2010.  (HC-90075)

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Assinalou que, se a conduta em questão não detém dignidade penal, a aplicação do art. 14 da Lei 10.826/2003, na espécie, representaria unicamente o uso do Direito Penal para a manutenção do sistema de controle do comércio de armas e munições. Ou seja, tal modelo imporia a aceitação de um discurso eminentemente funcional, mediante prevenção em geral negativa, procurando intimidar toda a sociedade quanto à prática criminosa. Assentou que isso justificaria, do ponto de vista da política criminal, certa antecipação da tutela, derrogando-se o princípio da lesividade, em função de necessidades da administração, o que, definitivamente, não seria e nem poderia ser o seu papel, nem sequer no contexto de uma sociedade de risco. Acrescentou, ademais, que o conceito material do delito e a idéia de subsidiariedade do Direito Penal, como diretriz político-criminal, pressuporiam que, antes de lançar mão do Direito Penal, o Estado adotasse outras medidas de política social que visassem proteger o bem jurídico, podendo fazê-lo de maneira igual e até mais eficiente. Afirmou que a condenação do paciente pelo porte de 10 projéteis apenas como incurso em tipo penal tendente a proteger a incolumidade pública contra efeitos deletérios da circulação de arma de fogo no país seria um exemplo do exercício irracional do ius puniendi ou do crescente distanciamento entre bem jurídico e situação incriminada, o que, fatalmente, conduzirá à progressiva indefinição ou diluição do bem jurídico protegido que é a razão de ser do Direito Penal. Após, pediu vista dos autos a Min. Ellen Gracie. HC 90075/SC, rel. Min. Eros Grau, 20.4.2010.  (HC-90075)


Aguardemos o resultado do julgamento, o qual, espera-se, seja proferido de acordo com a Constituição da República, já que os Eminentes Ministros são guardiões da Magna Carta.



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